A revolução tecnológica do vidro, promovida na Europa nos anos 50, chega ao Brasil com a constituição da Cebrace
Há quem diga que, depois de quase dois mil anos, desde a descoberta da técnica do sopro, a grande mudança na fabricação do vidro foi o sistema float. Pode haver algum exagero nessa idéia. Mas não há como negar que a introdução do novo processo em 1959 pela Pilkington representou uma revolução tecnológica na história do vidro plano.
Depois do float glass a indústria do vidro plano ascendeu a outro nível de desempenho técnico e econômico e o vidro ganhou qualidade muito superior àquela possibilitada pelos sistemas anteriores de produção. E o mais importante: estes benefícios se irradiaram rapidamente pelo mundo inteiro, na esteira da universalização do novo processo industrial promovida pela Pilkington, empresa que o criou e desenvolveu.
Pilkington
A Pilkington é uma das mais antigas e tradicionais companhias vidreiras mundiais, fundada na Inglaterra em 1826. Nasceu como uma pequena empresa, a St. Helens Crow Glass Company, na pequena cidade de St. Helens, de menos de cinco mil habitantes, no Centro-Norte do país. Da St. Helens do início do século 19 nasceu o atual Grupo Pilkington, um dos mais internacionalizados entre os grandes produtores mundiais de vidro.
A sede da companhia ficava lá até meados de 2006, quando o Grupo Japonês NSG adquiriu sua cota na bolsa de valores de Londres. Hoje, o Grupo tornou-se um conglomerado mundial de com cerca de 32.500 mil funcionários e atuação industrial em 29 países, focada nos setores Automotivo e de Construção Civil.
No editorial que escreveu em 1976 para a publicação comemorativa dos 150 anos da organização, o chairman, sir Alastair Pilkington, destacou como fatores responsáveis por esse notável crescimento o pioneirismo tecnológico, a busca permanente de novos mercados, a produção afinada com as demandas dos consumidores, o reinvestimento dos lucros, o tratamento atencioso aos parceiros e clientes.
Chama a atenção a ênfase dada à tecnologia como fator chave do desenvolvimento histórico do grupo. O investimento em pesquisa e desenvolvimento não costuma ser prioridade em muitas empresas, pequenas e grandes. Mas Alastair Pilkington sabia bem do que estava falando. Herdeiro e membro da quinta geração da família Pilkington, tinha sido ele o principal responsável pelo desenvolvimento do processo float. Depois de quase dez anos de pesquisa e de experimentação, ele conseguira afinal consolidar um novo sistema de produção de chapas de vidro perfeitas quanto à planimetria e transparência, as qualidades fundamentais do vidro plano. E o segredo era simples: um tanque de estanho aquecido onde a massa de vidro derretido flutuava e se distendia de maneira controlada e de onde saía na forma de uma chapa contínua na espessura e cor desejadas.
O processo foi patenteado em 1959 e logo em seguida começou a ser licenciado pela Pilkington para outras empresas interessadas na Europa, América do Norte e Ásia. O float confirmou ser uma tecnologia de ponta e, em menos de duas décadas, tornou-se o sistema produtivo dominante na industria mundial.
Para a Pilkington, o reconhecimento das virtudes e da eficiência do novo processo pela indústria de vidro plano tornou-se uma alavanca de crescimento. O licenciamento do float glass trouxe recursos que foram investidos na sua própria expansão, dirigida principalmente para a ampliação ou criação de operações industriais em outros países da Europa e fora dela. O que acabou por mudar radicalmente o desenho geográfico da atuação do grupo.
Enquanto até os anos 1970 quase 70% do seu faturamento eram obtidos no mercado interno, em 2000, 80% das vendas, de 2,8 bilhões de libras, são realizados fora do Reino Unido.
O Brasil foi um dos mercados que atraíram bastante o interesse da Pilkington. E nas décadas de 1970-80, de fato, o grupo passou a fazer importantes investimentos no país, como parte de um plano estratégico de longo prazo para a América do Sul.
Curiosamente, não era a primeira vez que o grupo chegava ao Brasil. Houve uma experiência anterior, iniciada pela ainda Pilkington Brothers em 1922 com um escritório de importação e distribuição de chapas no Rio de Janeiro e posteriormente com uma pequena manufatura de vidro temperado – da marca Triplex – em São Paulo. Em meados dos anos 1960, porém, a empresa decidiu encerrar seus negócios no país, vendeu os ativos para a Santa Marina e retirou-se do Brasil. Decisão que, indiretamente, pode ter favorecido a expansão da Blindex.
O grupo voltou na década seguinte, resolvido a marcar presença no país como grande produtor mundial de vidro plano. Primeiro, associando-se, em 1974, a outro grande produtor mundial, a Saint-Gobain, para a fabricação de chapas de float glass no Brasil.
Depois, incorporando a Blindex e a Providro em 1979, esta, logo em seguida, foi desativada em função da produção do float. Com isso, a Pilkington ocupava boa posição nas duas pontas do mercado, da produção da matéria-prima e do processamento de produtos acabados.
Saint-Gobain
Fundada e instalada em 1693 por Abraham Thévart no bairro de Saint-Gobain, em Paris, a companhia ganhou fama como fabricante de vidro plano em chapas de grande formato.
Graças ao processo de coulage, em que a massa de vidro fundido era derramada sobre uma mesa e distendida manualmente com rolos de cobre, a Saint-Gobain conseguia produzir chapas de mais de um metro de altura. Foi a fornecedora dos vidros para a famosa Galeria dos Espelhos do Palácio de Versalhes.
Nos séculos 18 e 19, a Saint-Gobain firmou-se como a maior indústria vidreira francesa, a ponto de virar símbolo da indústria nacional, e um dos maiores fabricantes de vidro da Europa. Em 1870, a empresa já era capaz de produzir por encomenda chapas de vidro de 25 metros quadrados.
Mas, no século 20, com a revolução industrial difundindo a tecnologia do vidro e, ao mesmo tempo, intensificando o consumo urbano, a empresa passou a enfrentar maior concorrência dentro e fora da Europa, especialmente por parte de companhias inglesas e norte-americanas. Reestruturou-se e adquiriu importantes empresas na própria França.
Reforçou-se para manter sua posição no continente europeu e ampliar sua atuação mundial.
No pós-guerra, por volta de 1950, a Saint-Gobain produzia 3,5 milhões de metros quadrados de chapas de vidro e seu plano estratégico era multiplicar esse volume rapidamente através da implantação de centros produtivos em mercados de grande potencial. Foi aí que o olhar da “velha Dama” alcançou o Brasil – o Brasil do processo acelerado de modernização urbano-industrial, o Brasil que evoluía rapidamente para se tornar o centro dos mercados sul-americanos.
Começaram então as negociações do grupo francês com os brasileiros da Vidraria Santa Marina, por volta de 1951. No final da década ambos se associaram para exercer conjuntamente o controle acionário, técnico e administrativo da Vidrobrás. Na década de 1970, a Saint-Gobain ampliou seus investimentos e assumiu o controle da Santa Marina, passando a gerenciar todas as suas atividades de fabricação e de transformação, nos setores de vidro plano e de vidro de embalagem.
Cebrace, o float no Brasil
Enquanto a Saint-Gobain tratava de consolidar seu espaço no mercado brasileiro, ocorria a revolução do float e a vigorosa expansão da Pilkington. O cenário mundial mudou completamente, inclusive no Brasil.
No mercado brasileiro os interesses dos dois players mundiais convergiram para a criação de uma joint venture destinada à fabricação de vidro plano, naturalmente já no processo float. Foi constituída então, em 1974, a Cebrace Cristal Plano Ltda., sendo o capital e os resultados divididos em partes iguais entre os dois sócios.
A primeira fábrica, a chamada Cebrace I, de 600 toneladas/dia de capacidade, foi construída em Jacareí, município paulista da mesma região do Vale do Paraíba onde já estava a Providro. Sua inauguração em 1982 marcou o início da produção de vidro cristal, ou float, no Brasil.
Marcou também o início de uma bem sucedida parceria entre a Pilkington e a Saint-Gobain na atividade industrial de vidro plano no Brasil, por intermédio de suas filiadas brasileiras, Blindex e Santa Marina, respectivamente. Dessa parceria resultaram outras duas grandes fábricas, a Cebrace II em Caçapava, inaugurada em 1989, e a Cebrace III em Jacareí, posta em operação em 1996, ambas com igual capacidade de 600 toneladas/dia. No total, a Cebrace passou a dispor da capacidade de produzir até 1800 toneladas diárias para o mercado interno e para exportação, assumindo a condição de maior fabricante brasileira e sul-americana de vidro plano.
À primeira vista essa associação, no Brasil, entre os dois tradicionais fabricantes europeus e fortes competidores mundiais poderia parecer estranha – ainda mais que, apesar de sócios na produção, continuariam a ser concorrentes diretos no processamento do vidro plano e, portanto, na disputa dos mercados consumidores .
Do ponto de vista da moderna administração de negócios, no entanto, não há nada de estranho. As alianças entre empresas do mesmo setor de atividade são feitas por motivos diversos, como a redução dos riscos do investimento e a racionalização operacional para adequar a produção ao comportamento do mercado. No caso da Cebrace, os sócios controladores, Pilkington e Saint-Gobain, além de dividir os encargos e riscos do investimento – duzentos milhões de dólares para a primeira planta – e de estabelecer um planejamento único para a joint venture, decidiram que cada fábrica seria administrada com a autonomia necessária para que cada uma procure sempre sua melhor performance.
Os resultados tem comprovado o sucesso da parceria para os acionistas. Depois de 27 anos de sociedade, iniciou-se as obras da Cebrace IV, uma nova fábrica localizada no município de Barra Velha, em Santa Catarina, e que entrou em operação em 2003.
A implantação da Cebrace e a introdução do float glass no Brasil trouxe inúmeras vantagens sobretudo para o mercado brasileiro de vidro plano. Todos os segmentos foram beneficiados. Com a maior oferta de vidro, o país deixou de importar chapas e pôde acabar com o velho sistema de cotas que engessava a comercialização do produto. Com um vidro de melhor qualidade, o processamento se desenvolveu de forma extraordinária, podendo usar tecnologias mais modernas para novas aplicações nos mercados de construção, automotivo e moveleiro.
A chegada do float em 1982 foi uma revolução também no Brasil. Ele permitiu ao país não apenas completar o ciclo da substituição de importações de insumos básicos, neste caso a chapa de vidro, mas entrar no estágio avançado também da de manufaturados, passando a produzir, por exemplo, o vidro laminado para uso na indústria automotiva.
Deslizando sobre o estanho
O vidro é um material tão transparente que não esconde seus defeitos, quando existem. Ondulações, granulações, bolhas, manchas e outras deformações na sua textura e qualidade ótica podem ser percebidas com facilidade.
Naturalmente sempre foi o objetivo dos fabricantes de vidro plano produzir uma chapa de vidro na exata espessura desejada, perfeitamente lisa e transparente. Um objetivo longamente perseguido e por fim alcançado com o processo float. Nesse processo, a mistura de areia e demais elementos que entram na composição do vidro, depois de fundida no forno de fusão, vaza para um tanque onde flutua sobre estanho líquido em atmosfera controlada e de onde sai em forma de uma folha de vidro contínua para as linhas de resfriamento gradual, inspeção a laser e corte mecânico.
Ao deslizar sobre o estanho, devido às diferentes densidades, o vidro não adere nem se mistura mas estabelece com ele um perfeito paralelismo, do que resulta sua superfície perfeitamente lisa. Controlando-se a velocidade de saída da folha contínua de vidro, determina-se com precisão a espessura da chapa a ser produzida. Da mesma maneira, adicionando-se corantes à mistura original, obtem-se chapas na cor desejada, sem prejuízo da planicidade e da transparência.
Nos processos anteriores do vidro estirado, as limitações técnicas geravam restrições ao uso das chapas em certos tipos de vidros de segurança, particularmente nos pára-brisas automotivos. Com o float – não por acaso chamado de vidro cristal – essas restrições deixaram de existir. Nos pára-brisas dos carros, o sanduíche das duas folhas de vidro com a lâmina de polivinil-butiral no meio garante a transparência exigida para uma boa visibilidade e maior segurança em caso de acidente.