Ao mesmo tempo em que valoriza, a moldura tem o poder de massacrar uma obra, se colocada inadequadamente
13/10/2010
Não é à toa que o mercado de arte sempre levou a sério esse arremate, a ponto de, em alguns casos, leiloeiros trocarem as molduras dos quadros antes de um leilão só para “enfeitar a noiva”, ou seja, deixar a obra mais atraente ao olhar dos colecionadores. Na história da arte, vários pintores criaram molduras para suas próprias obras, em busca da perfeita harmonia. Em nosso país, dois nomes ficaram famosos por essa prática: Wesley Duke Lee, nos anos 1970, e Tadashi Kaminagai, pintor e restaurador japonês radicado no Brasil em 1940. Sentindo dificuldade na colocação de molduras novas em quadros antigos, o artista japonês realizou uma série de experiências com pátina até chegar a uma aplicação que dava um efeito de envelhecimento bastante convincente na madeira.
Na primeira metade do século XX, as molduras Kaminagai, como ficaram conhecidas, ganharam o mundo e, em Paris (França), o escritor e marchand Ambroise Vollard passou a utilizá-las regularmente em quadros impressionistas. O sucesso foi tanto que até Henri Matisse e Marc Chagall, entre outros, fizeram uso da nova moldura patinada.
Segundo o empresário João Ricardo da Silva, da Moldura Ideal, do Rio de Janeiro (RJ), Kaminagai foi o último grande artista de moldura na arte moderna. “No Brasil tornou-se mestre de Inimá de Paula e Fukuda, entre outros. Sua criação veio dar o caimento que faltava para essa nova fase que despontava. Hoje, além de desenvolvermos todos esses estilos e técnicas, nós também fazemos uma releitura personalizada e direcionada ao mercado de arte contemporânea”, explica. Para o especialista carioca Jaime Portas Vilaseca – há sete anos no setor ao lado de seu pai, Jaime Vilaseca, designer de molduras há mais de 39 anos – os modelos feitos por Kaminagai são muito procurados ainda hoje e, quando encontrados, custam caríssimo. Para ele, uma moldura de qualidade pode, inclusive, valorizar financeiramente um quadro. “Além de melhorar a estética do conjunto, agrega valor à obra. Temos muitos clientes pintores que, antes de comercializar seus trabalhos, nos encomendam uma moldura que possa impulsionar a venda”, diz, complementando que para cada estilo pictórico há um modelo de moldura.
Um abstrato, por exemplo, requer emolduramento mais limpo, com perfis retos, para não interferir nesse tipo de trabalho que costuma ser de grandes dimensões. “Invariavelmente, nas pinturas abstratas a moldura deve ser uma extensão da obra. Já em um quadro mais escuro, como uma natureza morta, o ideal é a moldura mais clássica, com entalhes e douração, artifícios para ‘levantar’ a tela. Mas tudo feito com equilíbrio”, ressalta Vilaseca. Se para cada estilo de pintura corresponde um modelo de moldura, o mesmo acontece com os suportes, ou seja, trabalhos sobre papel, tela ou madeira terão molduras correlatas. Para fotografias, valem as retas e finas, nas cores branca ou preta. Nas fotos coloridas, a moldura branca e um passe-partout largo podem enaltecer bastante a peça.
Nos desenhos, aquarelas ou gravuras, não devem faltar acessórios como passe-partout, vidro (com reflexo ou sem reflexo, uma questão de gosto) e moldura que combine com a respectiva técnica. Para aquarelas, o usual são itens mais suaves. Com uma gravura antiga, por sua vez, é preciso respeitar o conceito da obra e partir para uma moldura mais elaborada, com ou sem pátina. Se o local de exposição sofre muita incidência de luz e sol, o aconselhável é usar vidro sem reflexo. “Há modelos com texturas e até outros com proteção ultravioleta, para não danificar um trabalho mais importante”, ensina Vilaseca, lembrando que, para evitar a ação dos fungos, deve-se utilizar papelão, passe-partout e a fita adesiva de PH neutro na montagem. Outro conselho do especialista diz respeito à restauração de molduras antigas. “Se a peça pode ser restaurada, seria um crime trocar a moldura antiga por uma nova, já que ela carrega a história da obra, dos proprietários etc. Portanto, faço o restauro mantendo-a o mais original possível. E se não dá para restaurar, procuro produzir algo que siga a linha da moldura já existente, utilizando madeiras nobres.”
Para Silva, a confecção de molduras e os materiais utilizados têm evolução ligada à história da arte. “Em um determinado momento, as técnicas empregadas eram extremamente valorosas e delicadas, como por exemplo, a aplicação de ouro fino e o entalhe na madeira. O primeiro está praticamente extinto devido ao alto custo, tempo de trabalho empregado e mão-de-obra altamente qualificada. Algo parecido acontece com o trabalho do entalhe na madeira. Porém, em ambos os casos há soluções que podem auxiliar no restauro de uma moldura como a aplicação de um material que imita ouro e o uso de massa plástica no entalhe.” Outro mestre das molduras, o suíço Dominique Edouard Baechler chegou ao Brasil em 1980 e montou um ateliê especializado em gravuras antigas e molduras artísticas na Granja Viana, em São Paulo (SP). Desde então, seu trabalho reflete a sua paixão como colecionador de papéis antigos. “Quando comecei a trabalhar no Brasil, percebi que havia um certo preconceito com a arte sobre papel, por ser considerada vulnerável e frágil. Houve uma mudança de mentalidade e ocorreu uma valorização desse material histórico, principalmente dos mapas e gravuras iconográficas brasileiras, registradas por pintores viajantes no passado”, comenta.
Baechler diz que as gravuras são itens vulneráveis e os principais agentes degradantes são o clima tropical saturado de umidade, a poluição e o excesso de luz. “Tudo isso danifica o papel. E não podemos esquecer que certas gravuras foram executadas há centenas de anos e é preciso muito cuidado. Todo material a ser utilizado na montagem de um quadro é extremamente importante para a sua conservação, mas lamentavelmente não encontramos tão facilmente no Brasil”, afirma acrescentando que “o uso de passe-partout com Ph neutro, sem ácido, assim como o fundo neutro e impermeável (foam board) é requisito básico.” Para dar identidade a cada obra, Baechler realiza um trabalho artesanal tanto com as molduras (nacionais e importadas) como com os diversos materiais do passe-partout. Sempre em busca de novidades, utiliza tecido, papel reciclado, de parede e marmorizado – a maioria importada da Inglaterra e dos Estados Unidos –, e até resina e aço, que estão entre os mais modernos atualmente. “Junto com a necessidade de conservação estão, naturalmente, os critérios de beleza e de estética. Uma montagem infeliz pode ‘matar’ uma gravura como um penteado errado pode interferir na beleza de uma mulher. Eu costumo sondar o gosto dos meus clientes, incluindo perfil e cultura, assim como eventuais imperativos de cores ligadas à decoração geral da casa ou, pelo menos, do ambiente onde as gravuras vão ser penduradas. Se eu não concordar, tento aconselhar seguindo os meus princípios estéticos e, um deles, é acompanhar as cores e o gênero da própria gravura nas cores e no tipo do passe-partout e da moldura”, explica.
O uso do vidro é outra questão a ser levada em conta. “É um protetor indispensável contra a sujeira, poluição e umidade ambiente. No caso de luz em excesso pode ser usado um especial anti-raios ultravioleta e o anti-reflexo. A tecnologia dos vidros nos últimos anos teve um desenvolvimento interessante, inclusive na produção nacional”, informa. No caso das molduras tipo sanduíche de vidro, Dominique Baechler comenta que essa foi uma moda abandonada aos poucos. O motivo era o efeito estufa, que ocasionava a falta de respiração do papel e a proliferação acelerada de mofo, fungos etc. “Com os recursos atuais, essa montagem pode ser muito interessante e bonita, criando um aspecto quadro-objeto que não precisa mais ser colocado em uma parede, mas instalado em qualquer espaço.”
Por Isabella Blanco
Fonte: blogdaretro