Da Antiguidade a Bizâncio, de artefatos romanos aos vitrais da Idade Média, é longo o caminho da fabricação do vidro até chegar ao Brasil.
Segundo o historiador romano Plínio, o Velho, do século I d.C., a honra caberia aos fenícios, os primeiros a observar, e depois a reproduzir, o fenômeno natural do aquecimento e fusão da sílica pela ação de um raio e a conseqüente formação de uma placa fina e translúcida de vidro – ou cristal, como foi chamado. Esse acidente primordial teria ocorrido nas areias de uma praia do Mediterrâneo, no litoral do Líbano atual, mais de dois mil anos antes da Era Cristã. Porém, os estudos arqueológicos não confirmam o relato de Plínio na sua alentada Naturalis historia de 37 livros.
A presença de contas de vidro colorido, colares, brincos e frascos em grande quantidade e variedade nas tumbas dos faraós mostra que no Egito o vidro era conhecido, fabricado e usado em utensílios, adornos e objetos cerimoniais há mais tempo talvez do que na Fenícia.
Controvérsias à parte, a verdade é que o vidro começou a irradiar seu brilho e a fascinar os homens com seu mistério desde tempos remotos. Não foi por mero acaso, certamente, que o profeta Ezequiel, no século VII a.C., descreveu o trono de Deus envolto por um mar de vidro resplandecente, “uma abóbada límpida como cristal” (Ez. 1,22) – imagem tão forte que atravessou os séculos e acabou repetida mais tarde pelo apóstolo João no livro do Apocalipse (Ap. 4,6), ao descrever sua visão mística da glória divina.
Também parece ser verdade que foi entre os povos do Mediterrâneo que a arte e a indústria do vidro avançaram rapidamente. Ainda no início da Era Cristã, os sírios inventaram a técnica do vidro soprado e com ela revolucionaram toda a atividade vidreira, ganhando qualidade, melhorando o acabamento e aumentando a diversidade dos produtos, especialmente os de vidro oco, como frascos e garrafas.
Coube aos romanos e ao seu poderoso Império difundir essa técnica por todo o mundo mediterrâneo, pela Europa ocidental e Oriente Próximo. Cuidaram, porém, de manter a atividade sob controle e, sobretudo, de tirar dela o melhor proveito mercantil. Diversas províncias e cidades do Império se notabilizaram como centros de produção e comércio de vasos, jarras, copos, garrafas, braceletes e colares feitos de vidro de alta qualidade, bem como pastilhas para mosaicos e folhas para vidraças. Predominava naturalmente a produção de utensílios domésticos e objetos de decoração, fáceis de produzir com o sopro. A fabricação de chapas era mais complexa e difícil, restringindo o uso de vidros nas janelas às casas patrícias e às igrejas. Como a igreja de São Paulo extra muros, que o imperador Constantino mandou construir nas vizinhanças de Roma, sobre a qual se disse possuir janelas de vidro de várias cores e “tão brilhantes como os campos de flores na primavera”
Da Idade Média à Era Industrial
Os vidreiros romanos, depois de dominar a técnica do sopro, desenvolveram o uso do vidro combinado com o de metais, como o ferro e o chumbo. Tornaram-se exímios artífices de vasos ornamentais e grandes criadores de mosaicos, desenhados e montados com habilidade e delicadeza. Esse conhecimento e essa experiência seriam fundamentais para a arte dos vitrais.
Durante boa parte da Idade Média, com a instabilidade que tomou conta da Europa ocidental, foi o Império Romano do Oriente que assegurou a permanência do patrimônio artístico e cultural do Ocidente. Constantinopla tornou-se o refúgio de muitos artistas e artesãos, entre eles os vidreiros, que tiveram sua atividade resguardada e estimulada pelo Estado. Em Bizâncio puderam continuar a desenvolver seu trabalho, que, enriquecido pelas influências helenísticas e árabes, alcançou alto nível de qualidade e criatividade na fabricação e uso dos vidros de cor.
E foi de Bizâncio que a arte do vidro voltou com força ao Ocidente. A partir do século 13, Veneza torna-se o grande centro vidreiro europeu. Concentrados – confinados, na verdade – na ilha de Murano, as corporações e os mestres venezianos ganharam fama com seus vasos, frascos, garrafas, copos, compoteiras, espelhos, lentes e chapas de vidro espalhados por toda a Europa.
A força da manufatura veneziana, por sua vez, impulsionou outros centros de produção, na França, Alemanha, Bélgica e Boêmia principalmente. Estimulou o surgimento de novas técnicas de sopro que permitiram, por exemplo, fabricar as chapas de vidro usadas na montagem dos magníficos vitrais das catedrais góticas. Eram chapas ainda bastante imperfeitas, com muitas ondulações e grande variação de cor, tonalidade, tamanho e espessura. Mas foi justamente a partir da combinação desses “defeitos” que os mestres vitralistas compuseram as obras de arte com que iluminaram as igrejas e as almas dos devotos.
Além de manifestação de fé profunda e técnica refinada, os vitrais medievais eram também uma demonstração do grau de desenvolvimento já alcançado pela manufatura do vidro. Ou melhor, pela cultura do vidro. Não só o prestígio dos artesãos vidreiros era amplamente reconhecido pela sociedade, como a aplicação do vidro no uso doméstico, na decoração, na joalheria, na perfumaria, na ótica e na arquitetura estava plenamente consolidada. O vidro, sem dúvida, tornara-se uma solução prática, revestida de valor estético.
Nos tempos modernos, o espírito humanista e individualista que dominou a Renascença e o espírito racionalista e cientificista que anunciou a Era Industrial irão beneficiar o desenvolvimento dessa cultura. A meta, agora, é a do “vidro perfeito”, no desenho e acabamento dos frascos para perfumes, por exemplo, ou no aperfeiçoamento das folhas de vidro para espelhos e vidraças ou em outro qualquer produto. Para isso, novas pesquisas e experiências em busca de maior conhecimento e de processos produtivos e equipamentos mais eficientes.
Nos séculos 17 e 18, a França esteve à frente da manufatura européia de vidro. Foram seus artesãos que desenvolveram algumas das novas técnicas de produção usadas da época e foram seus governantes – o rei Luís XIV e o ministro Colbert, particularmente – que mais se empenharam em estimular e proteger a atividade vidreira nacional. Criaram empresas estatais, como a Manufacture Royale des Glasses de France, induziram a criação de empresas privadas, como a famosa fábrica de Saint-Gobain nos arredores de Paris. E não hesitaram em usar o recurso da força para garantir mão-de-obra qualificada, como fizeram no virtual seqüestro de dezoito artesãos venezianos de Murano, contratados e trazidos secretamente para a França para trabalhar e desenvolver a vidraria francesa.
A partir dos séculos 19 e 20, porém, quando a manufatura vidreira dá lugar à grande indústria do vidro e a fabricação do vidro plano afirma-se como segmento específico e importante, surgem novos e poderosos competidores. Inicialmente destacam-se a Inglaterra, a Alemanha e a Bélgica e depois os Estados Unidos, que já em 1900 assumem a condição de maior produtor mundial de vidro plano.
Essa expansão industrial corresponde, por um lado, ao crescimento rápido e contínuo da demanda de vidro plano com o uso generalizado de janelas envidraçadas nas cidades e, por outro, ao desenvolvimento científico e tecnológico envolvido na pesquisa de materiais, na experimentação de novos processos técnicos e na aplicação intensiva do vidro em grandes estruturas e edificações. Estruturas como a do Palácio de Cristal, construído em apenas seis meses e inaugurado em Londres em 1851 para acolher a Grande Exposição Internacional da Indústria – uma enorme e reluzente montagem em colunas, vigas e arcos de aço e chapas de vidro, símbolo da Era Industrial onde o vidro, definitivamente, deixa de ser usado como acessório e ornamento e passa a ser considerado um recurso essencial para a qualidade, conforto e segurança da vida moderna.
Primeiros passos no Brasil
A vida moderna, com seu espírito progressista e seu estilo elegante e informal, chegou devagar ao Brasil. O vidro, também.
Foi em Salvador, em 1810, que surgiu a primeira fábrica de vidros, montada por Francisco Inácio de Siqueira Nobre, com a devida autorização do Regente D. João recém-chegado no Brasil. As notícias são incertas. Dão conta que a Real Fábrica de Vidros da Bahia – feita à imagem e semelhança da Real Fábrica da Marinha Grande criada em Portugal algumas décadas antes – começou logo a entregar os primeiros vidros. Mas não teria tido vida longa, atingida pelos conflitos e combates da Independência, muito acesos na Bahia.
Além de vidros, o governo D. João VI autorizou e até apoiou a produção de tecidos, ferro, pólvora, ferramentas, corantes, óleos de iluminação etc. Não se tratava de uma política de industrialização de longo prazo – uma substituição de importações avant la lettre –, mas da tentativa de adaptação imediata à situação criada pela ocupação estrangeira do reino e pelas dificuldades momentâneas do comércio com a metrópole.
Ainda assim, era uma guinada nas regras do jogo, exatos 25 anos depois que a rainha D. Maria I endurecera o regime monopolista, baixando o famoso decreto da proibição das fábricas e manufaturas no Brasil.
As coisas, porém, não aconteceram como o previsto. Apesar do empenho e das boas intenções do governo português, o sucesso do plano de criar no Brasil “todo o gênero de manufaturas, sem exceção alguma” foi pequeno, quase nulo.
É verdade que os decretos joaninos falavam mais em “permitir” do que em “desenvolver” as manufaturas, denunciando uma visão estratégica ambígua e pouco eficiente. Entretanto, mais do que nas inconsistências econômicas e nas tensões políticas da Independência, a consolidação desses e outros incipientes setores manufatureiros esbarrou principalmente nas condições econômicas e sociais de um país que deixava de ser colônia, mas continuava a ser agrário, exportador e escravista. No caso dos vidros, nem o estímulo oficial dado por meio da obrigatoriedade do uso de vidraças nas janelas na Corte foi suficiente para alavancar a produção. Oliveira Lima, no clássico D. João VI no Brasil, apresenta a medida como “uma revolução nos costumes nacionais”. Pode ser. Porém, seus efeitos práticos sobre a atividade econômica vidreira foram pobres. Consta que alguns dos copos que D. João VI trouxe na bagagem foram usados pelos netos do imperador Pedro II – duraram nada menos que cinco gerações.
Na Exposição Nacional de 1861 – “1ª Exposição Nacional de Produtos Naturais e Industriais” – promovida pelo governo imperial no Rio de Janeiro para mostrar aos estrangeiros que o Brasil não produzia só açúcar, café, algodão, cacau, couros e carnes salgadas, foi exibida boa variedade de produtos manufaturados. Entre os vidros, apenas alguns tipos bem simples de garrafas, garrafões, frascos e globos para lampiões. Eram fabricados por pequenas manufaturas de vidreiros portugueses, herdeiros da cultura e da formação técnica da fábrica da Marinha Grande, ou por artesãos italianos que começavam a chegar com as primeiras levas de imigrantes europeus. De vidro cristal, nada.
Para envidraçar as janelas, só comprando o produto trazido de fora pelas casas importadoras. Que, de resto, importavam praticamente tudo o que fosse necessário no acabamento e no mobiliário das casas, sobretudo das mais ricas, de louças e lustres a telhas, torneiras, fogões, baixelas, pianos, cortinas, almofadas, forrações, vasos, espelhos, vitrais e vidros. As tarifas em geral baixas facilitavam a importação, justificada pela insuficiência ou má qualidade – ou ambas – da produção nacional, a qual, justamente por ser insuficiente e ruim, provocava a necessidade da importação e… das baixas tarifas.
Da manufatura à indústria
Romper esse círculo vicioso e mudar o ambiente desfavorável aos investimentos na atividade vidreira era um processo lento e complexo, que ainda demoraria muito tempo para se completar. Mas, ainda no final do século, outros passos importantes seriam dados nessa direção.
Em 1882 foi criada no Rio de Janeiro a primeira grande indústria brasileira de vidros, a Fábrica Esberard, produtora de vidros de embalagem e vidros planos.
Cresceu rapidamente…
Em pouco mais de dez anos de funcionamento, empregava mais de quinhentos operários e os cristais da marca Esberard eram prestigiados no país inteiro, a ponto de serem comparados aos famosos Baccarat franceses.
Em 1895, em São Paulo, nascia a Companhia Vidraria Santa Marina, fundada pela associação de dois ilustres representantes do empresariado paulista, Antônio da Silva Prado e Elias Fausto Pacheco Jordão. Outro empreendimento de grande sucesso – em menos de dez anos já fabricava um milhão de garrafas e dois mil metros quadrados de vidro plano por mês nas instalações do bairro da Barra Funda, na várzea do rio Tietê, empregando seiscentos funcionários.
Em 1916, também no Rio de Janeiro, era fundada mais uma empresa vidreira de sucesso por dois jovens engenheiros cariocas, Olavo Egydio de Souza Aranha Jr. e Alberto Monteiro de Carvalho, a Companhia Industrial São Paulo e Rio, a Cisper. Usando pioneiramente no Brasil as máquinas automáticas criadas nos Estados Unidos por Michael J. Owens – que aposentaram a velha técnica de sopro de quase dois mil anos –, ela se tornou uma das maiores fabricantes de garrafas e copos de vidro do país, fornecendo principalmente para a indústria de cervejas e refrigerantes concentrada em São Paulo.
Em 1933, Nadir e Morvan Dias de Figueiredodo, empreendedores já bastante conhecidos em São Paulo, expandiam seus negócios comerciais e industriais com a inauguração de uma moderna indústria de copos e artigos de vidro. Com uma tecnologia bastante avançada para a época, a Nadir Figueiredo iniciou as operações produzindo o apreciável volume de 72 mil copos por dia.
Não há dúvida de que se tratava de empreendimentos importantes, que mostravam um novo caminho à frente. E não eram os únicos, pois havia outras empresas vidreiras de menor porte em operação na Bahia e no Rio Grande do Sul. Mesmo assim, eram empreendimentos que pouco se destacavam no conjunto da economia brasileira.
No censo das atividades econômicas realizado e publicado em 1909 pelo Centro Industrial do Brasil, o setor vidreiro aparece apenas em 29º lugar entre as 38 indústrias mais importantes, segundo a relação entre o valor da produção anual e o capital registrado. Com um detalhe revelador: ao relacionar as atividades representativas da economia de cada estado brasileiro, o censo aponta a produção de vidros em somente um deles, São Paulo.
O caminho à frente da indústria do vidro, portanto, ainda era longo. Para o vidro plano provavelmente seria maior ainda, considerando que as atividades iniciais concentravam-se no vidro de embalagem. Mas a marcha havia começado. Estava sendo impulsionada pelo espírito empreendedor daqueles pioneiros e favorecida pelas próprias condições do país.
Aqueles empresários do início do século tinham claro que a economia brasileira já desenvolvia uma potência e uma aceleração que, a médio e longo prazos, a levariam a superar os limites tradicionais das monoculturas exportadoras e a reduzir a dependência das importações de manufaturados – o que não era nada mal para quem vinha ou estava ligado aos negócios de exportação e importação. Tinham também a convicção de que o mercado interno responderia muito favoravelmente aos seus investimentos, um mercado em expansão com a uma intensificada imigração estrangeira, com o crescimento populacional e do consumo, este, sobretudo, urbano. A história mostrou que eles estavam certos.