Precioso e raro na colônia, o vidro plano popularizou-se no século 20 e hoje empresta luxo e modernidade às mais belas construções arquitetônicas.
Entre os presentes e mimos oferecidos por Cabral aos Tupinambás do sul da Bahia em abril de 1500 não havia nada feito de vidro, segundo Pero Vaz de Caminha, testemunha ocular e relator oficial do encontro inaugural da nossa história. Mas com a exploração intensiva do pau-brasil nas décadas seguintes, a troca de árvores cortadas pelos nativos por variados artigos europeus virou prática usual, e a lista de produtos oferecidos aumentou. Em 1549, na construção da cidadela que deu origem a Salvador, a primeira capital do Brasil, o governador Tomé de Souza pagou a madeira fornecida pelos índios com um lote de mercadorias que incluía 14 dúzias de facas, 320 tesouras, 9 200 anzóis – e 70 espelhos.
O escambo e o comércio regular da colônia com a metrópole cresceram, mas não impediram que por um bom período o vidro fosse um personagem furtivo, quase oculto, mais refletindo do que intervindo na paisagem brasileira. Nos primeiros tempos da sociedade colonial, de vida modesta e construções rústicas, a presença do vidro limitou-se a alguns raros utensílios domésticos, como frascos e copos – tão raros que, quando existiam, eram arrolados nos inventários familiares –, e algumas janelas envidraçadas, privilégio de umas poucas edificações. O vidro, no Brasil, era um personagem ainda à procura de uma história.
Igrejas e palácios
Não há fartura de registros escritos e iconográficos sobre a utilização do vidro na arquitetura dos tempos coloniais, o que dificulta a pesquisa e o conhecimento. Porém, juntando as escassas imagens disponíveis – entre elas, as dos pintores flamengos da primeira metade do século 17 – às descrições de cronistas e viajantes dos séculos 18 e 19 e à permanência de edificações e cidades mais antigas, pode-se reconstituir alguma coisa do cenário da arquitetura na colônia.
Esse trabalho começou a ser feito, e brilhantemente, diga-se, nos anos 1930 e 1940 pelo artista e pesquisador José Wasth Rodrigues no seu Documentário Arquitetônico. E a julgar por seus desenhos e aquarelas, produzidos a partir de cuidadosos e pacientes levantamentos em vários estados brasileiros, o cenário colonial, em relação à qualidade estética e técnica das construções, não devia ser muito estimulante. Casas de taipa de pilão de um só pavimento, com dois cômodos e cobertas por folhas de palma protegiam os pobres. Casas de pedra e cal, térreas ou sobrados, com mais espaço interno e cobertas por telhas abrigavam os ricos.
Aquelas incorporaram muito dos materiais e técnicas de construção das ocas indígenas. Essas reproduziram mais de perto o padrão e a técnica da arquitetura portuguesa e as suas influências mediterrâneas e árabes.
Umas e outras variavam mais no tamanho do que na estrutura. Em todas, as marcas do despojamento, da rusticidade e da pobreza, expostas no chão batido, na extrema simplicidade do mobiliário, nas alcovas sem janelas, na ausência de refinamento no projeto e no uso dos recursos de circulação, arejamento e iluminação, como portas e janelas, por exemplo. Nas moradas pobres das vilas e povoados, uma porta e uma janela compunham a fachada. Nas casas abastadas dos senhores de terras, dos comerciantes ricos ou das altas autoridades civis e religiosas, fachadas mais largas, com varandas, sacadas e janelas. Em todas, quase sempre, janelas cegas, com folhas de madeira, sem vidros.
Janelas com vidraças só aparecem entre os séculos 17 e 18 e quase exclusivamente em construções “nobres”, igrejas e palácios, nas cidades mais prósperas e mais importantes ligadas à estrutura econômica e administrativa da colônia. Na planta da igreja do Colégio dos Jesuítas em Salvador, construída no Terreiro de Jesus na década de 1670 e depois transformada em catedral da cidade, estava indicada pelo seu arquiteto, o sargento-mor engenheiro José Antônio Caldas, a colocação de vidraças em todas as janelas, inovação considerável para a época. Por volta de 1720, ao instalar-se em Mariana, o novo governador da capitania de Minas Gerais, o conde de Assumar, mandou reformar e envidraçar as janelas da casa que lhe serviria de residência. O viajante inglês John Byron, de passagem pelo Rio de Janeiro em 1764, anotou no seu diário que o paço dos governadores era o único edifício da cidade que tinha visto com vidros nas janelas, registro semelhante ao que outro inglês, Henry Koster, faria durante sua estada no Recife em 1809.
Como atestam as pesquisas mais recentes de estudiosos como Carlos Lemos, Paulo F. Santos e Nestor Goulart Reis Filho, os vidros eram um luxo quase ausente no cenário simples, rústico e pobre da colônia, tanto nas moradias urbanas quanto nas casas-grandes dos engenhos e fazendas.
Trata-se de uma ausência de certo modo surpreendente. Ela se contrapõe à imagem de “opulência” da América portuguesa descrita por cronistas, exibida no esplendor das igrejas barrocas e embalada pela riqueza do açúcar e do ouro. Trata-se também de um referencial geralmente pouco notado pelos historiadores. Mas que confirma o sentido e os limites da colonização mercantilista lusitana, pensada e praticada mais com o pragmatismo dos que vinham para enriquecer e voltar do que com o idealismo do que chegavam para trabalhar e permanecer.
Das rótulas às vidraças
Assim, por muito tempo, o que se viu nas janelas foram as rótulas e os muxarabiês de origem mourisca, quando não simples folhas de madeira tapando os vãos. Variavam de forma e funcionamento nas diferentes localidades, eram eficientes contra o excesso de luz e calor. Porém, seu aspecto geral era tosco e triste, deixando as fachadas pesadas, atrapalhando a passagem dos transeuntes nas calçadas, empobrecendo o visual urbano.
Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos, referindo-se ao uso generalizado de rótulas nas janelas e balcões das casas e sobrados do Recife e de São Paulo no século 19, observou que ele deixava as cidades com um ar “tristonho”. Juízo muito mais severo, entretanto, havia sido feito na época pelo Intendente de Polícia do Rio de Janeiro. Em 1811, por ordem do Regente D. João, ele mandou que os moradores tirassem todas rótulas das paredes e das sacadas e as substituíssem por janelas envidraçadas, para acabar com o que chamou de “costume bárbaro”. A Corte portuguesa chegara, era preciso arejar e alegrar a cidade.
Essa determinação do governo central, que provavelmente surpreendeu e desagradou os cariocas, valia para o Rio de Janeiro. Mesmo aí só aos poucos foi sendo cumprida. Nas províncias demorou muito mais para ser adotada. Em São Paulo e em Salvador, por exemplo, só na década de 1870 as Câmaras Municipais decretaram oficialmente o fim das rótulas.
Na verdade, a lenta introdução das “folhas de vidro de abrir” nas janelas completou-se apenas no início do século 20, e por vários fatores. Primeiro, porque o vidro era de fato escasso e caro, inclusive em Portugal, e trazê-lo de lá e levá-lo em lombo de mula até o interior da colônia, sem quebrar, era missão arriscada. Depois, porque o aumento do consumo dependia de um conjunto de medidas políticas, econômicas e técnicas ligadas à produção (metrópole) e importação (colônia) do vidro plano e à formação de mão-de-obra especializada, de arquitetos e mestres-de-obra a vidreiros e caixilheiros.
Nem uma coisa nem outra tiveram solução rápida. A primeira fábrica de vidro foi construída em Portugal pelo governo do Marquês de Pombal em meados do século 18 e a primeira escola superior de arquitetura criada no final do século pela rainha D. Maria I, vindo a funcionar, aliás, muito precariamente em razão da ocupação francesa do reino em 1807. No Brasil, as tentativas de implantar fábricas de vidro pelo governo português depois da vinda para o Rio de Janeiro tiveram pouco sucesso.
Das janelas para as paredes
Mesmo devagar, entretanto, a utilização das vidraças avançou no país. As elites foram descobrindo e incorporando novos padrões de conforto, higiene e estética na concepção e na construção das suas moradias – padrões europeus, franceses e ingleses especialmente. Ao longo do século 19, a França e a Inglaterra tomaram o lugar da antiga metrópole como referência para comportamentos, preferências e hábitos de viver, produzir e consumir.
Depois de desvencilhar-se de Portugal, curiosamente, o Brasil parece ter-se apegado ainda mais à Europa. A elite, sobretudo, passou a adotar desde os autores franceses e ingleses para os saraus literários até as cadeirinhas de palha austríacas para as salas de estar e os “vidros à francesa” – porque fornecidos em grande parte pela Saint-Gobain – para as janelas.
Os conhecidos trabalhos fotográficos de Militão em São Paulo e de Ferrez no Rio de Janeiro, Salvador e Recife, feitos nas últimas décadas do século 19, mostram que nas principais cidades brasileiras as vidraças apareciam por toda a parte, nas casas, nas lojas e nos edifícios, comprovando que o tempo das rótulas, símbolo do passado colonial, tinha acabado. Mostram também os novos estilos de construção nos sobrados e palacetes neoclássicos, exibindo elegância por dentro e por fora em seus interiores mais bem distribuídos, decorados e iluminados, em suas fachadas de grandes janelas envidraçadas e em seus jardins cercados de gradis de ferro trabalhado.
Por trás dessa crescente “europeização” estavam a riqueza do café e a aristocracia burguesa dos barões do Império. Para afirmar-se e destacar-se no cenário de um país ainda agrário e escravista, ela não hesitava em importar tudo o que a nova civilização industrial oferecia para sua prosperidade e desfrute, não só as máquinas e os trens para beneficiar e transportar o café até os portos, como também uma infinidade de artigos pessoais e domésticos, como porcelanas inglesas, tecidos franceses, lustres e cristais belgas, mármores italianos, lavatórios e sanitários alemães.
Na virada para o século 20, a República tratou de apressar o passo na direção da modernidade. Repercutindo aqui a euforia e a fé no progresso que animavam a Belle Époque européia, ela esforçou-se para, senão sepultar, ao menos reformar o passado colonial.
Num primeiro momento, atuou diretamente sobre a realidade física e social urbana e estimulou investimentos privados para melhorar as estruturas de saúde, educação, trabalho e lazer dos grandes centros. A reforma urbanística de Pereira Passos e as campanhas sanitárias de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, os bairros de Campos Elíseos e Higienópolis e os projetos da avenida Paulista de Joaquim Eugênio de Lima e do Teatro Municipal de Ramos de Azevedo em São Paulo, são bons exemplos dessas ações públicas e privadas. A vacina, o boulevard e o estilo eclético e a art nouveau anunciam a nova atmosfera social e cultural das principais cidades brasileiras.
Num segundo momento, promoveu e/ou apoiou investimentos na busca do desenvolvimento industrial, para tirar o Brasil da condição de país agrário-exportador e fazê-lo entrar para o clube dos países capitalistas industrializados, auto-suficientes e competitivos. Foi o que se fez com determinação a partir dos anos 1930 e 1940.
O espírito dos tempos republicanos brasileiros, mais aberto, democrático e modernizador, era um espírito de muitas faces. Na arquitetura e na engenharia civil, ele iria revelar-se na adoção das recentes inovações européias e norte-americanas de conceito, técnica e estilo de construção. A combinação de ferro, aço, cimento, vidro e outros materiais permitiu obras maiores, melhores e até arrojadas, como estações ferroviárias, pontes, usinas, fábricas, museus, mercados, teatros, estádios e “arranha-céus”. A valorização da funcionalidade, com melhor distribuição e iluminação dos espaços de acordo com finalidades específicas, estimulou a criação de obras mais bem planejadas e executadas a menor custo, como escolas e hospitais, residências e prédios públicos. Avançando nesta direção, a arquitetura brasileira incorporava novos conhecimentos e aplicava novos recursos na busca de soluções mais eficientes para as necessidades humanas, individuais e coletivas, de morar, trabalhar e conviver.
Um desses recursos foi, com certeza, o vidro. A partir das décadas de 1940 e 1950, o uso do vidro na edificação se intensifica, sob influência das principais escolas da arquitetura mundial e sob pressão interna da modernização urbano-industrial do Brasil.
Projetado em 1936 por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, jovens discípulos brasileiros de Le Corbusier, e inaugurado em 1943, o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro trazia uma fachada inteira em vidro, devidamente protegida por uma “cortina” de placas redutoras da incidência da luz solar, as brises-soleil criadas pelo mestre suíço e inéditas no Brasil. Apenas um ano depois, Niemeyer entregava o conjunto da Pampulha em Belo Horizonte, formado por um cassino, um clube, um restaurante e a igreja de São Francisco, onde a luz do sol, atravessando a ampla fachada de vidro, entrava para iluminar os painéis de Portinari. Anos depois, em 1951, a arquiteta Lina Bo Bardi e o crítico de arte Pietro Maria Bardi inauguravam sua residência no bairro do Morumbi em São Paulo, que não por acaso ficaria conhecida como a “casa de vidro”. E em 1960, Oscar Niemeyer, novamente em companhia de Lúcio Costa, dava ao Brasil e ao mundo a obra monumental da nova capital do país, feita de concreto e vidro.
Na casa do Morumbi, nos edifícios de Brasília e nos muitos outros que vieram depois, o vidro ultrapassa os vãos das janelas para compor as próprias paredes. Num contraponto surpreendente com o concreto, o vidro abre enormes possibilidades de plasticidade, beleza e conforto para as edificações. O vidro passa a fazer parte da paisagem brasileira, definitivamente. O personagem encontrou a sua história.
Sob o signo da luz
Não se sabe quando ela chegou por aqui, quem a trouxe de Portugal e onde foi colocada a primeira vidraça. Nem se sabe ao certo se as primeiras janelas envidraçadas apareceram em Salvador, no Recife ou em Vila Rica. Mas não parece haver dúvida de que foi em Brasília que o uso intensivo do vidro na arquitetura brasileira ganhou pleno reconhecimento e aprovação. Isto graças à criatividade genial de um arquiteto que superou a dicotomia entre a utilidade e a arte, sintetizando-as no seu conceito de arquitetura plástica, onde o projeto, os materiais e a técnica são pensados e aplicados na produção de obras tão funcionais quanto confortáveis e elegantes, belas e inovadoras – obras para serem usadas e admiradas. Para Oscar Niemeyer, a arquitetura precisa de conhecimento e técnica, não menos do que de “engenho e arte”.
De Salvador a Brasília, do século 18 ao século 20, a arquitetura e o vidro percorreram um caminho longo. O namoro foi demorado, mas teve um final feliz.
Nessa trajetória, o desenvolvimento da arquitetura e das técnicas de construção avançou quase aos saltos, à medida que recebeu, incorporou e reelaborou impulsos ou influências de fora. A Missão Artística Francesa trouxe o neoclássico no início do século 19 e Ramos de Azevedo difundiu o ecletismo no início do século 20.
A partir dos anos 1930 e 1940 Warchavchik, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Rino Levi, Sérgio Bernardes e Villanova Artigas introduziram as idéias e as formas das vanguardas modernistas européias e norte-americanas de Walter Gropius, Mies van der Rohe Le Corbusier, Frank Lloyd Wright e outros. Idéias de Le Corbusier sobre a função da arquitetura, “iluminar os espaços”, e formas de Lloyd Wright com muito vidro, considerado por ele como o “super material” da vida moderna.
Foi neste ponto que a arquitetura e o vidro cruzaram seus caminhos. Porque à medida que iam construindo suas casas e prédios no Rio, São Paulo, Belo Horizonte e, sobretudo, em Brasília, os arquitetos brasileiros foram lavrando um protocolo não-escrito, informal mas eficiente, de defesa da iluminação natural dos ambientes, de ligação do interior com o exterior, de integração do conjunto arquitetônico com o seu entorno geográfico, social e cultural. Pela mão dos arquitetos modernistas, o Brasil, país solar, descobriu a excelência da luz e da transparência. Descobriu o vidro.