Formado por diferentes matérias-primas, estrutura molecular do vidro ainda é o maior desafio científico na teoria sobre estado sólido
É fato conhecido que os vitrais coloridos das velhas igrejas européias são mais espessos embaixo porque o vidro é um liquido de movimento lento que flui para baixo ao longo dos séculos.
Conhecido, mas incorreto. Os fabricantes medievais de vitrais eram simplesmente incapazes de produzir painéis perfeitamente lisos, e as janelas tinham espessura irregular mesmo quando novas.
A história contém um traço de verdade quanto à semelhança entre o vidro e os líquidos, no entanto: os arranjos dos átomos e moléculas do vidro não se distinguem dos existentes em líquidos. Mas um líquido pode ser tão notavelmente duro quanto o vidro?
“Vidros são os mais espessos e densos líquidos e os mais desordenados e desestruturados sólidos”, disse Peter Harrowell, professor de química na Universidade Sydney, Austrália, acrescentando que podem ser formados de diferentes matérias-primas. “Eles representam um quebra-cabeças complexo e profundo”.
Philip Anderson, físico da Universidade de Princeton que ganhou o Nobel, escreveu em 1995 que “o problema mais profundo e mais interessante que ainda pede solução na teoria sobre o estado sólido é provavelmente o da natureza e da transição do vidro”.
Ele acrescentou que “isso talvez venha a propiciar grande avanço científico na próxima década”.
Passados 13 anos, cientistas continuam a discordar, com alguma veemência, sobre a natureza do vidro.
Teorias
Peter Wolynes, professor de química da Universidade da Califórnia em San Diego, acredita ter resolvido o problema do vidro duas décadas atrás, com sua idéia de que aparência o vidro ganharia caso fosse resfriado com infinita lentidão. “Acredito que tenhamos uma teoria construtiva sólida a esse respeito, agora”, disse Wolynes. “Muita gente me diz que a questão é contenciosa, mas discordo deles violentamente”.
Outros, como Juan Garrahan, professor de física na Universidade de Nottingham Inglaterra, e David Chandler, professor de química na Universidade da Califórnia em Berkeley, adotaram abordagem diferente estão igualmente certos de que estejam no caminho certo.
“Surpreende a muita gente que ainda não tenhamos compreendido essa questão plenamente”, disse David Reichman, professor de química na Universidade Colúmbia, que propõe ainda outra abordagem para o problema do vidro. “Não compreendemos por que o vidro deveria ser sólido, e como ele se forma”.
Reichman disse, sobre a teoria de Wolynes, que “creio que muitos dos elementos estejam corretos”, mas acrescentou que não se tratava do quadro completo. Os teóricos se deixam atrair pelo problema, disse Reichman, “porque acreditamos que não esteja resolvido ainda – bem, à exceção de Peter, claro”.
Os cientistas estão lentamente acumulando mais pistas. Alguns anos atrás, experiências e simulações em computador mostraram algo de inesperado: à medida que o vidro derretido se resfria, suas moléculas não desaceleram de maneira uniforme. Algumas áreas se enrijecem primeiro enquanto em outras as moléculas continuam saltitando como se fossem líquidos.
Ainda mais estranho é que a aparência das regiões ainda em movimento rápido não difere da apresentada pelas regiões em que o momento é lento.
Enquanto isso, as simulações em computador ganharam sofisticação e dimensões suficientes para oferecer novas percepções, e novas teorias vieram a ser proferidas para explicar os vidros.
David Weitz, professor de Física na Universidade Harvard, brincou que “existem mais teorias sobre a transição do vidro do que teóricos a propô-las”.
Weitz conduz experiências usando minúsculas partículas suspensas em líquidos a fim de imitar o comportamento do vidro, e prefere se abster das batalhas teóricas. “As coisas ficam tão controversas e a discussão é tão ruidosa que prefiro não participar”.
Para os cientistas, vidro não é apenas o vidro das janelas e jarros, feito de silício, carbonato de ódio e óxido de cálcio. Em lugar disso, um vidro é qualquer sólido no qual as moléculas sejam misturadas de forma aleatória. Muitos plásticos, como o policarbonato, são vidros, e o mesmo se aplica a muitas cerâmicas.
Compreender o vidro não só resolver um problema fundamental já antigo na ciência (e provavelmente digno de um Nobel) como talvez permitisse o desenvolvimento de vidros melhores. O conhecimento poderia beneficiar os fabricantes de remédios, por exemplo.
Certos remédios, se pudessem ser produzidos na forma de estrutura estável de vidro, em lugar de em forma cristalina, se dissolveriam mais rapidamente, permitindo uso oral em lugar de intravenoso.
As ferramentas e técnicas aplicadas ao vidro também poderiam oferecer avanços em outras áreas, na ciência dos materiais, biologia e outros campos, que estudem as propriedades gerais surgidas de muitas interações desordenadas.
Simples complexidade
“Um vidro é um exemplo, possivelmente o mais simples, de verdadeiro complexidade, diz Harrowell. Nos líquidos as moléculas saltitam seguindo percursos confusos e aleatórios. Quando refrigerado, um líquido se congela, como a água em forma de gelo, ou não se congela, e em lugar disso forma um vidro.
Ao se congelar em forma de sólido convencional, o líquido passa por uma transição de fase: as moléculas se alinham ao lado e sobre umas as outras em padrão simples, cristalino. Quando um líquido se solidifica como vidro, esse processo ordenado de alinhamento desaparece. Em lugar disso, as moléculas perdem mais e mais velocidade até que efetivamente param, aprisionadas em um estranho estado entre o líquido e o sólido.
A transição nos vidros não ocorre a uma temperatura única e bem definida; quanto mais lento o resfriamento, menor a temperatura de transição. Mesmo a definição de vidro é arbitrária – basicamente, um ritmo de fluxo lento a ponto de tornar qualquer observação tediosa e demorada demais. A estrutura final do vidro também depende da lentidão de seu resfriamento. Em contraste, a água, resfriada rápida ou lentamente, se cristaliza consistentemente na mesma estrutura de gelo, à temperatura zero.
Para desenvolver sua teoria, Wolynes utilizou uma observação realizada décadas atrás, de que a viscosidade do vidro estava relacionada à dimensão da entropia -uma medida de desordem- no vidro.
Além disso, caso um vidro pudesse ser formado por resfriamento em ritmo infinitamente lento, a entropia desapareceria a uma temperatura bem acima do zero absoluto, o que viola a terceira lei da termodinâmica, segundo a qual a entropia desaparece quando a temperatura chega ao zero absoluto. Wolynes e seus colaboradores desenvolveram um modelo matemático que descreve esse vidro hipotético e impossível, e o designaram “vidro ideal”.
Com base nesse vidro ideal, eles afirmam que as propriedades dos vidros reais podem ser deduzidas, ainda que cálculos exatos fossem muito difíceis de realizar. Isso aconteceu nos anos 80. “Eu imaginava que o problema estaria resolvido em 1990”, diz Wolynes, que por isso se dedicou a outros projetos.
Nem todo mundo se satisfez com a teoria. Wolynes e sua equipe insistiam tanto em que estavam certos “que parecia que estavam tentando vender um carro usado”, disse Jean-Philippe Bouchaud, da Comissão de Energia Atômica da França. “Creio que Peter não seja o melhor defensor de suas idéias. Ele exagera na venda”.
Por volta daquela época, os primeiros indícios da dicotomia entre regiões de movimento rápido e lento no vidro em solidificação foram encontrados em experiências, e simulações em computador previram a existência desse padrão, conhecido como heterogeneidade dinâmica.
Weitz trabalha há duas décadas com colóides, ou suspensão de esferas plásticas em líquidos, e imaginou que poderia usá-las para estudar a transição. À medida que o líquido é expulso, as partículas colóides passam pela mesma mudança que o vidro em refrigeração. Com os colóides, ele pode fotografar o movimento de cada partícula em um vidro coloidal e demonstrar que alguns blocos de partículas se movem rapidamente e outros quase não o fazem. “Pode-se vê-los”, ele afirmou. “Com muita clareza”.
As novas descobertas não perturbaram Wolynes. Por volta de 2000, voltou ao problema do vidro, convencido de que com técnicas usadas em problemas de dobras de proteínas ele conseguiria cobrir algumas das lacunas computacionais em sua teoria sobre o vidro. Entre os cálculos, ele descobriu que a heterogeneidade dinâmica era uma conseqüência natural da teoria.
Bouchaud e um colega, Giulio Biroli, retomaram a teoria de Wolynes, e a traduziram em termos mais fáceis de compreender, realizando previsões confirmáveis por meio de experiências. “Por muito tempo, eu não acreditei na história, mas vim a confiar em que ela oferece algo de muito profundo”, disse Bouchaud. “Creio que aquele grupo teve uma fantástica intuição sobre como o problema deveria ser atacado”.
Para Garrahan e Chandler, o contaste entre regiões rápidas e lentas era tão notável, ante as demais dinâmicas da transição, que decidiram se concentrar nele. Afirmaram que o processo fundamental na transição do vidro era uma transição de fase nas trajetórias, de móveis a imóveis, e não uma mudança de estrutura, como se vê na maioria das transições de fase.
Eles decidiram ignorar os efeitos mais sutis relacionados ao inatingível vidro ideal. “Se não é possível chegar a elas, estamos falando de temperaturas metafísicas”, disse Chandler.
Chandler e Garrahan desenvolveram e solucionaram modelos matemáticos mas, como Wolynes, não convenceram a todos de como seu modelo se relaciona a vidros reais. A teoria não tenta explicar a suposta conexão entre entropia e viscosidade, e alguns cientistas dizem que é difícil acreditar que a conexão seja apenas coincidência e não esteja relacionada à transição do vidro.
Harrowell disse que nas teorias propostas até agora, os teóricos ainda não arriscaram palpites sobre as propriedades atômicas elementares ainda não observadas no vidro, e ele não sabe se uma teoria só pode tratar de todos os vidros, já que eles são definidos não por uma característica que tenham em comum, mas sim por uma característica que lhes falta: a ordem.
E pode haver muitas razões para que a ordem seja perturbada. “Se eu mostrasse uma sala na qual não há um elefante, perguntar por que não há um elefante na sala não seria uma questão pertinente”, afirma Harrowell.
Testes futuros
Novas experiências e novas simulações podem oferecer explicações melhores sobre os vidros. Simulações conduzidas por Harrowell e sua equipe conseguiram prever, com base no padrão de freqüências de vibração, que áreas provavelmente se imobilizarão e que áreas continuarão móveis. Os lugares mais suaves, que vibram em freqüências menores, se moviam mais livremente.
Mark Ediger, professor de química na Universidade do Wisconsin, em Madison, descobriu uma maneira de produzir películas finas de vidro com a estrutura mais estável de um vidro que tenha “envelhecido” por pelo menos 10 mil anos.
Ele espera que a película sirva como teste para a teoria de Wolynes e aponte para o que realmente acontece quando o vidro se aproxima do estado ideal, já que ninguém espera mesmo que a terceira lei da termodinâmica desapareça.
Weitz continua a comprimir colóides, exceto que as partículas agora são feitas de um gel comprimível, o que permite que os vidros coloidais exibam maior gama de comportamentos vítreo.
“Quando pudermos dizer que estrutura está presente nos vidros, teremos conquistado progresso real”, disse Harrowell. Com sorte, algo com implicações mais amplas do que apenas para os vidros”.
The New York Times
Fonte: Terra
One thought on “Um mistério chamado vidro”
Comments are closed.