Na era da globalização, a indústria de vidro plano no Brasil alcança os mais eficientes patamares de qualidade e iguala-se aos grandes produtores mundiais.
Ainda estão presentes na memória coletiva brasileira as dificuldades que o país viveu na década de 1980. Pode não ter sido uma década perdida, como ainda é lembrada por muitos, mas certamente não foi um período fácil. O déficit público, a dívida externa, a superinflação e a recessão compuseram uma mistura perigosa que, mesmo não chegando a explodir, resistiu bravamente ao tratamento de choque de sucessivos planos de estabilização.
Se a travessia daquele década foi difícil, os anos 1990 chegaram com perspectivas novas e, pode-se dizer, animadoras. A abertura econômica, a desregulamentação de diversas atividades, a flexibilização das leis trabalhistas e as privatizações prometiam injetar ânimo na economia, religar o Brasil ao mercado financeiro internacional, recuperar o interesse dos investidores e, com o aporte de capital e tecnologia, equilibrar as contas externas e superar o hiato tecnológico do país, sobretudo do setor industrial. Pouco depois, a estabilidade monetária conseguida pelo Plano Real veio completar um quadro que, se por um lado apresentava novos desafios, por outro se mostrava bastante favorável à retomada dos investimentos e do crescimento econômico sustentado.
Crescer na crise
A indústria brasileira de vidro plano levou cerca de quarenta anos para atingir a marca das duzentas mil toneladas anuais, alcançada em 1980. E levou apenas duas décadas para alcançar o nível atual, por volta de setecentas mil toneladas, incluindo a produção de vidro impresso. Como essas não foram décadas especialmente estimulantes do ponto de vista macroeconômico, ao contrário, o setor de vidro plano mostrou que aprendeu a crescer na crise, a navegar em mar grosso, a transformar as dificuldades em oportunidades.
Para manter o desempenho e um nível de crescimento constante, a indústria não deixou de investir na capacidade de produção e na logística de distribuição. Não deixou também de incentivar os seus clientes diretos, os processadores, a modernizarem as instalações, os equipamentos e a estrutura de atendimento aos consumidores.
Entre 1980 e 2000, a Cebrace, o maior fabricante de vidro plano, realizou investimentos regulares para manter sua capacidade instalada sempre acima das projeções de consumo e assegurar uma utilização efetiva satisfatória. A maioria desses recursos veio da reaplicação sistemática de boa parte dos lucros obtidos por suas fábricas. Paralelamente, instalou dois centros de distribuição de chapas em posições estratégicas, os depósitos de Recife, em Pernambuco, e de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, para atender melhor as regiões Norte e Nordeste e Sul do país.
Como nenhuma empresa ou grupo pode desenvolver-se satisfatoriamente em um setor atrasado ou estagnado, a Cebrace procurou apoiar também o desenvolvimento geral do setor vidreiro. No início da década de 1990, por meio de um programa especial chamado Incentivo ao Negócio de Vidro, INV, a empresa aplicou vários milhões de dólares em empréstimos a processadores interessados em comprar ou construir galpões, instalar docas e pontes rolantes para carga e descarga, importar fornos, mesas de corte, máquinas de lapidação ou comprar veículos preparados para o transporte de vidro. Além disso, procurou manter uma relação comercial aberta e saudável, preservando o equilíbrio de preços relativos e garantindo a todos os distribuidores e processadores o mesmo tratamento.
Os objetivos eram ambiciosos: modernizar o equipamento e adequar toda a estrutura de processamento aos padrões tecnológicos internacionais e às normas técnicas vigentes no país. Os resultados foram compensadores. A cadeia produtiva de vidro plano no Brasil alcançou um patamar de eficiência e qualidade bem próximo ao dos melhores do mundo, e a Cebrace dobrou o número de clientes diretos. Os 160 processadores e distribuidores que atendia no país no ano de sua inauguração passaram para 300 em 1999.
Diversificar e agregar valor
Maior que o desafio de aumentar a capacidade produtiva em uma conjuntura pouco favorável, era o de aumentar o faturamento e a rentabilidade. Ou seja, além de produzir mais, produzir e vender melhor, agregando maior valor ao produto.
Considerando as médias históricas baixas do consumo per capita de vidro no Brasil – consumo quase inercial, mal acompanhando o crescimento da população – e considerando que mais da metade do vidro plano produzido era, como ainda é, usado como vidro comum nas vidraças das janelas, não seria um objetivo muito fácil de alcançar. Além disso, aos problemas conjunturais do país somavam-se as condições socioeconômicas estruturais de baixa renda, instrução precária e subemprego de boa parte da população que comprometiam, como ainda comprometem, a melhora substantiva dos índices de produtividade e de consumo.
Nesse quadro e com tal diagnóstico, a estratégia recomendada era, naturalmente, a de diversificar ao máximo as linhas de produtos acabados, dos menos aos mais sofisticados, para os vários setores, segmentos e nichos do mercado consumidor de vidro. E se havia muitas condições a jogar contra, havia pelo menos duas a jogar a favor: a auto-suficiência industrial e a alta qualidade do vidro float.
O grau de diversificação alcançado pelo setor nos anos 1980 e 1990 pode ser medido pelo tamanho da lista de produtos que passou a desenvolver para os diferentes mercados.
Divididos nas categorias de vidros de segurança para arquitetura e para indústria automobilística, vidros refletivos e vidros espelhados, os produtos processados são mais de cinqüenta tipos diferentes de vidros. E se nos anos 1960-70 as estrelas foram os temperados, nas duas últimas décadas passaram a ser os laminados e os refletivos, aqueles com aplicação prioritária no setor automotivo e estes destinados mais a atender a construção civil.
As revistas especializadas ligadas à arquitetura, decoração, design, automóveis, além das publicações do próprio setor, oferecem uma boa amostra do extraordinário avanço tecnológico do processamento e da variedade de produtos processados nesse período.
Novamente, deve-se ressaltar que a grande conquista foi menos quantitativa do que qualitativa. Mais importante do que reconhecer nos selos dos carros novos a procedência nacional dos pára-brisas laminados, dos vidros traseiros temperados e dos laterais temperados e encapsulados é entender que se eles podem ser fabricados no país é porque os processadores se capacitaram a produzi-los dentro de normas técnicas e padrões de exigência de uma das indústrias mais avançadas, como é a automotiva. Isto vale igualmente para os refletivos, colocados nas fachadas de edifícios e shopping centers modernos de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras cidades, menos para embelezar do que para proporcionar segurança e conforto, controlando a luminosidade, absorvendo ou refletindo o calor.
O grau de diversificação no processamento da matéria-prima, na verdade, revela o nível de desenvolvimento alcançado pelo setor como um todo. Se o setor vidreiro nacional deu um enorme salto de qualidade com a introdução do processo float de produção da chapa, deu outro maior com sua capacitação técnica e empresarial para atender plenamente a demanda interna de produtos processados.
Mercados em movimento
Como em todos os demais setores econômicos, os mercados de vidro plano são diversos, dinâmicos e têm características próprias. Os principais têm sido, historicamente, o de construção e o automotivo.
Com exceção de alguns breves períodos de certo destaque do setor automotivo, foi o mercado de construção civil, ou de arquitetura, o de maior predominância ao longo do tempo. No final dos anos 1990, segundo dados da Abividro, as vendas para a construção civil respondiam por 55% do total, enquanto as vendas para a indústria automobilística representavam cerca de 25%. São indicadores gerais que, para terem melhor precisão, devem ser relativizados. Na construção a demanda e os volumes vendidos tendem a ser naturalmente maiores, porque o mercado consumidor é amplo. No setor automotivo, porém, os produtos têm, em geral, um valor unitário mais elevado e, portanto, maior valor agregado.
Nas décadas de 1980 e 1990, a dinâmica do setor fez emergir com força novos mercados, ao lado de segmentos e nichos . Foi o caso do moveleiro e do de eletrodomésticos, por exemplo, que se tornaram fatias importantes do bolo, com aplicação do vidro em quantidades crescentes na fabricação de móveis e aparelhos elétricos, no acabamento e decoração dos ambientes domésticos. Espelhos e vidros trabalhados nas portas de armários, vidros temperados e esmaltados para fogões e geladeiras, tampos e prateleiras de vidro temperado nas mesas e estantes passaram a dar um toque de leveza e elegância a salas, corredores, halls, cozinhas e quartos.
Referência de segmento de mercado que emergiu e ganhou relevância é o de reposição para o setor automotivo. À medida que os componentes dos carros passaram a embutir novas tecnologias dificultando sua produção pelo mercado secundário de autopeças, os processadores tiveram a possibilidade de incorporar à sua atividade normal esse segmento bastante rentável.
Já como exemplos de nichos de mercado surgidos em meados dos anos 1980 e ainda em desenvolvimento, pode-se apontar o de vidros blindados e de vidros especiais. Os blindados são compostos especiais de vidro, policarbonato e outros materiais para uso em automóveis e aviões e também em portas, janelas e fachadas de lojas, bancos, hotéis, escritórios e residências. São a resposta do setor à demanda crescente da sociedade por maior segurança individual e coletiva. Os especiais são os vidros de alta tecnologia feitos para determinados equipamentos, como cinescópios de televisores e monitores de microcomputadores.
Com toda essa dinâmica, o mercado de vidro plano – incluídos seus segmentos e nichos principais – ainda mantinha a estruturação definida no início da década de 1980. Uma estruturação onde se destacavam um fabricante de float, a Cebrace, e os processadores mais tradicionais, como a Blindex, a Santa Marina, a Fanavid e alguns outros, melhor capacitados a operar com linhas de produtos sofisticadas tanto para arquitetura quanto para a indústria automotiva. Um cenário, entretanto, que iria sofrer mudanças significativas nos anos 1990.
O Vidro e os Vidros
O vidro plano é um só, mas os vidros que dele se originam são muitos. Depois de milhares de anos sendo produzido, o vidro continua a manter a mesma composição – mistura de aproximadamente 70% de sílica ou areia, o agente vitrificador, e outros 30% de sódio, magnésio, alumina, potássio e cálcio, fundida e transformada em massa homogênea a 1.600ºC. Porém, dessa mistura original saem produtos de vidro plano cada vez mais diversos.
Esses vidros podem ser classificados em muitas categorias, segundo diferentes critérios técnicos, como, por exemplo, o processo de produção, o acabamento, o nível de transparência, a coloração e assim por diante. São hoje algumas dezenas de produtos, dos temperados para boxes, portas e janelas aos laminados para os setores automotivo e de arquitetura, dos refletivos para construção civil aos espelhos para o setor moveleiro e aos térmicos para a indústria de eletrodomésticos. E com o advento do processo de coating, mais aplicações. Uma delas por exemplo é o tratamento da superfície externa do vidro colocado em janelas e fachadas, para torná-lo “autolimpante”: graças a esse tratamento a sujeira não adere e o vidro é lavado naturalmente pela água da chuva.
Os fornos de fusão da massa primordial do vidro podem não ser uma cornucópia. Pórem, eles não param de gerar a matéria prima que a pesquisa científica e a tecnologia, também incessantemente, transformam em novas e supreendentes aplicações. Depois de milhares de anos de existência, o vidro não perdeu o brilho. Ao contrário, nunca brilhou tanto quanto agora.
Abertura e globalização
Enquanto a década de 1980 passou para a história como a década da inflação e da recessão, a de 1990 ficou marcada como a década da abertura econômica. O que não só é verdade, como de fato este processo está diretamente ligado aos dois anteriores.
Em pouco menos de três anos, entre 1990 e 1992, o Brasil começou a desmontar um modelo de desenvolvimento econômico que havia durado meio século. O modelo baseado na proteção do mercado interno e na substituição de importações deu lugar a uma nova estrutura baseada na abertura comercial e na livre participação do capital externo na economia. A ação do Estado-empresário foi reduzida com a desestatização de diversas atividades e as próprias atribuições do poder público no âmbito econômico ganharam um sentido mais de regulação do que de atuação direta.
A desmontagem do velho modelo de inspiração nacionalista e a abertura do mercado brasileiro era a resposta de curto prazo à crise conjuntural dos anos 1980. De imediato, procurava-se romper o círculo vicioso do endividamento e da inflação com a retomada do crescimento econômico adubado pela poupança externa. Em longo prazo, o objetivo era muito mais amplo. Tratava-se de fazer um up grade geral na economia brasileira, organizacional e tecnológico, e prepará-la para uma inserção competitiva na economia mundial – prepará-la para a globalização que se anunciava.
Foi uma brusca e forte correção de rumo, que inevitavelmente provocou alguns solavancos.
Mas a abertura foi bem-sucedida, mesmo com os ajustes ainda em curso. São inquestionáveis, por exemplo, os benefícios econômicos e tecnológicos trazidos pelas novas montadoras de automóveis instaladas no país, como as francesas Renault, Citroën e Peugeot e as japonesas Honda, Toyota e Mitsubishi. Não há dúvida que a redução dos direitos de importação e, sobretudo, a disponibilidade de uma base industrial, de uma infra-estrutura de serviços e de um mercado consumidor de bom potencial mostraram-se eficientes em induzir novos investimentos externos e internos e em fazê-los frutificar rapidamente.
Foi o que aconteceu também no setor de vidro plano. As facilidades tarifárias e as condições de financiamento oferecidas pelos exportadores internacionais possibilitaram o que antes era quase inviável: a importação de equipamentos de última geração para o processamento da matéria-prima. Isso impulsionou antigos e novos empreendimentos dos transformadores de vidros temperados, laminados e espelhos, como em São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Paraná, Brasília, Bahia e Ceará. O mercado ganhou muito em competência nos diversos segmentos.
Da mesma forma, as possibilidades de importação da própria matéria-prima trouxeram um novo componente ao mercado. Além da produção interna, o país passou a contar também com um bom volume de chapas do México, Venezuela, África do Sul, Japão e outros países asiáticos, adquiridas por empresas de importação aqui estabelecidas. E partir de 1996, o mercado interno passou a contar com a presença de mais um fabricante, a norte-americana Guardian, grande produtora de vidro com operações em diversos países, que escolheu o Brasil para implantação de sua 19ª. unidade industrial, inaugurada em 1998 e localizada em Porto Real, no estado do Rio de Janeiro.
Em outros setores da economia brasileira, o processo pode ter andado mais devagar, mas, no setor de vidro plano a abertura e a globalização avançaram juntas e a passos largos.