A era Vargas e a modernização industrial
É consensual entre os historiadores que a Revolução de 1930 funcionou como uma alavanca que moveu os trilhos, mudou a linha e pôs o trem no rumo da modernização. Ao transferir o poder das velhas oligarquias agrárias para as elites, a classe média e os trabalhadores urbanos, a revolução liderada por Getúlio Vargas abriu um novo horizonte político e uma nova agenda econômica para o país.
No período em que Getúlio Vargas governou ou influenciou diretamente os destinos do Brasil – mais de duas décadas –, a ação fortemente centralizadora e intervencionista do Estado seria apoiada em um novo pacto social e político, envolvendo a burocracia oficial, o empresariado e os sindicatos operários, apresentados como representantes dos interesses nacionais. Sua atuação econômica teria como foco o desenvolvimento industrial, a busca da auto-suficiência em setores básicos. Em resumo, as palavras de ordem na era Vargas seriam nacionalismo e industrialização.
Os Pioneiros
Com uma carta régia na mão e uma idéia na cabeça, o vidreiro português Francisco Ignácio de Siqueira Nobre montou em 1810 a Real Fábrica de Vidros Bahia e deu a partida na produção de vidros planos e ocos no Brasil – O pioneiro dos pioneiros.
Além da autorização real, contava com o apoio explícito do Visconde de Cairu, Ministro e Conselheiro particular de D. João VI e pessoa influente na Corte. Não era pouca coisa, mas não foi o suficiente. As questões políticas de independência e a ira dos importadores portugueses derrubaram o ambicioso projeto.
Setenta anos e várias tentativas depois, outro empreendedor entra em campo decidido a incluir o vidro na relação das “indústrias nacionaes”, como se dizia e escrevia na época. Em 1882, o brasileiro, filho de franceses Fraçois Antoine Marie Esbérard inaugurou a Companhia Fábrica de Vidros e Crystaes do Brasil em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. |
O sucesso de suas garrafas, vidros e cristais foi tão rápido que despertou a curiosidade de um ilustre morador do bairro, o Imperador Dom Pedro II, que chegou a visitar a fábrica mais de uma vez. Foi pena que problemas de sucessão tenham desestabilizado o negócio na década de 1940 e acabado por fechar uma indústria que figurou entre as maiores do país.
Se o empreendimento dava certo no Rio, teria êxito também em São Paulo. Na capital paulista, Antônio da Silva Prado, advogado e político, e Elias Fausto Pacheco Jordão, engenheiro civil, associaram-se em 1895, inaugurando uma fábrica de garrafas e vidros, a Companhia Vidraria Santa Marina.
Como outros empresários paulistas originários das linhagens cafeeiras, os dois sócios apostaram na diversificação dos investimentos, na transferência de capital da agricultura para a indústria. Acreditaram na vocação industrial de São Paulo e tiverem sucesso.
Substituição de importações
Num dos seus primeiros discursos, em 1931, o presidente Vargas proclamava: “Muito teremos feito dentro em breve se conseguirmos libertar-nos da importação de artefatos de ferro. Nacionalizando a indústria siderúrgica, daremos um grande passo na escalada do alto destino que nos aguarda.” Em um discurso posterior, de 1939, aproveitava para reafirmar seu compromisso com a substituição de importações, aumentando a lista dos produtos que era preciso parar de importar: “Ferro, carvão e petróleo são os esteios da emancipação de qualquer país.”
Não se tratava de retórica. Getúlio Vargas não era economista, era um bom político. Sabia o que queria e como conseguí-lo.
Vargas partilhava da convicção geral da época de que a industrialização era o caminho mais curto para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e condição essencial para a modernização nacional. Por um lado, acreditava na necessidade de o Estado tomar a frente desse processo e, por outro, tinha perfeita consciência do quanto o crescimento industrial correspondia aos interesses das forças sociais e políticas emergentes, sobretudo do empresariado e proletariado urbanos. Para empresários e trabalhadores, a política de industrialização e suas promessas de maior crédito, de maiores tarifas externas e mais empregos internos eram música para os ouvidos.
As promessas, na medida do possível, foram se cumprindo e os resultados começaram a aparecer. No início da década de 1940, estavam registradas no país oitenta mil indústrias, com um total de 1,2 milhão de empregados – cinco vezes maior que o registrado vinte anos antes. Ainda eram, em geral, pequenos estabelecimentos, porém, e isto é o mais importante, já abrangiam vários setores produtivos, dos tradicionais tecidos, alimentos, bebidas, calçados e móveis aos novos segmentos de cimento, aço, papel, material elétrico, artefatos de borracha e produtos químicos.
A revolução industrial brasileira avançava, agora a passos firmes. Para acelerá-la, um personagem de certo modo inesperado: a Segunda Guerra Mundial, que convulsionou boa parte do planeta de 1939 a 1945.
Os anos da guerra aumentaram as dificuldades de abastecimento externo. Isso naturalmente estimulou novos empreendimentos internos e reafirmou a necessidade da luta por maior auto-suficiência industrial. As alianças político-militares também deram sua contribuição: em troca das bases do Nordeste, o governo Vargas obteve dos Estados Unidos o capital e a tecnologia para construir a maior usina siderúrgica brasileira. Fundada em 1941, a Companhia Siderúrgica Nacional entrou em operação em 1946, em Volta Redonda, estado do Rio de Janeiro. Tornou-se o primeiro grande ícone, e a prova do sucesso da política de substituição de importações da era Vargas.
Covibra, CPVP e Vidrobrás
A industrialização a toque de caixa iniciada na era Vargas tinha uma receita simples e clássica. Os ingredientes eram as barreiras alfandegárias elevadas, o controle estatal de setores estratégicos – e de outros nem tanto –, o crédito oficial para o capital nacional e os incentivos ao investimento estrangeiro. Como tempero ideológico, um forte espírito nacionalista, freqüentemente mais impulsivo do que eficaz.
A industrialização tinha também um foco claramente direcionado, que se manteve sem grandes alterações do pós-guerra até os anos 1970. Seu alvo eram os setores considerados básicos para o desenvolvimento do conjunto das atividades industriais, os setores transformadores de matérias-primas e fornecedores de insumos para outros segmentos e os setores produtores de bens de consumo duráveis e não-duráveis. Faziam parte dessa pauta privilegiada extração mineral, siderurgia, eletricidade, combustíveis, cimento, alumínio, metal-mecânica, celulose-papel, química-farmacêutica, química-têxtil, processamento de borracha e de carnes.
O vidro plano, como se vê, estava fora da pauta – fora de foco, literalmente – nas etapas iniciais da industrialização brasileira. Não era considerado um insumo essencial como outros. Ao contrário, ainda estava classificado entre os “artigos supérfluos”, pagando taxas de até 40% na importação, mesmo sem uma produção interna suficiente.
Mas, na verdade, estava fora só da pauta oficial. No mercado não faltavam empreendedores e investidores interessados em explorar um negócio que, pelo potencial de consumo, parecia ter um futuro bastante promissor. E quando a Segunda Guerra se intensificou, ameaçando envolver o Brasil e criar grandes dificuldades para o comércio exterior do país, a conjuntura tornou-se bastante favorável.
A iniciativa de incluir o vidro plano na agenda da substituição de importações, aproveitando exatamente essa oportunidade, coube a um empresário de origem portuguesa, Lúcio Tomé Feiteira. Sentindo que a importação de vidro da Europa estava praticamente inviabilizada pela guerra – com a redução da sua produção industrial a própria Europa estava virando importadora –, Feiteira fundou no Rio de Janeiro em 1942 a Companhia Vidreira Nacional, Covibra. Com apoio do governo do estado do Rio de Janeiro, a indústria foi instalada em São Gonçalo, na época distrito de Niterói, para aproveitar as areias de boa qualidade do lugar e, em uma primeira etapa, fornecer vidro plano para o mercado formado pela Capital Federal e toda a baixada fluminense.
Quase ao final da guerra, em São Paulo, os proprietários da Vidraria Santa Marina criavam a Companhia Paulista de Vidro Plano, CPVP. Instalada ao lado da tradicional empresa do bairro da Barra Funda, e aproveitando as mesmas areias trazidas da Freguesia do Ó para a produção de garrafas, a nova fábrica produziria vidro para o mercado da capital paulista, para o interior do estado e regiões vizinhas. O “paulistinha”, o vidro da CPVP, logo se tornou conhecido e em pouco tempo podia ser visto em muitas janelas.
Avaliando a força dos concorrentes e do mercado paulista – caminhando rapidamente para ser o maior do país –, Tomé Feiteira não perdeu tempo e propôs uma associação entre as duas empresas. As negociações e os preparativos, no entanto, levaram alguns anos. Foram conduzidos pelo próprio Feiteira e pelo empresário mineiro Sebastião Pais de Almeida, que além de ligado por parentesco à família Prado, era acionista da Santa Marina, comerciante de vidro e importante liderança política. No início da década de 1950 foi acertada a criação das Indústrias Reunidas Vidrobrás Ltda., resultado da fusão entre a Covibra e a CPVP.
Com sede no Rio de Janeiro, a nova empresa pode aproveitar a proximidade do governo federal e contar com uma assessoria de alto nível, da qual participavam os advogados San Tiago Dantas e Hermes Lima, figuras de proa da política brasileira da época. A base industrial continuou dividida entre São Gonçalo e a Barra Funda. Posteriormente, tanto a sede central como a atividade industrial seriam concentradas em São Paulo. Para os dois lados, a criação da Vidrobrás era uma boa maneira de fortalecer e ampliar o negócio, aproveitando melhor o potencial dos dois principais mercados brasileiros.
Feiteira e seus sócios paulistas, em menos de duas décadas, lançaram no mercado nacional a indústria de vidro plano. Além do nome afinado com o espírito nacionalista dominante, a Vidrobrás ganhou força e autonomia para buscar eficiência e melhorar a qualidade do produto. Procurou crescer com a incorporação de outras empresas, como a Vicry, fábrica de vidro impresso fundada em 1937 em São Vicente. E para desenvolver-se tecnicamente buscou a parceria da norte-americana Pittsburgh Plate Glass. Era detentora do processo Pittsburgh usado nos Estados Unidos, um aperfeiçoamento do processo Fourcault de produção do vidro plano estirado.
O Vidro Estirado
Diziam os antigos que para fazer vidro com a cana de sopro não bastava ser um bom artesão – era preciso ser artista. Se isso era verdade para o vidro oco, de embalagem, devia ser mais ainda para o vidro plano de vidraça.
A vida dos vidreiros não era fácil. Melhorou, é certo, com a “coulage” do final do século 17, um método de fazer vidro plano estirando a massa derretida manualmente com rolos, como se fosse massa de macarrão. Mas foi em decorrência da Revolução Industrial que tudo começou a mudar. No início do século 20, um belga, Émile Fourcault, inventou um processo mecânico de estirar a massa do vidro por meio de pinças e fazê-la subir por uma estrutura vertical de quase 20 metros para ser cortada.
Passar do vidro estirado manualmente para o estirado mecanicamente foi uma transformação notável. As dificuldades técnicas, porém, ainda eram grandes, e os defeitos do vidro também. Para facilitar a saída da massa para a estrutura de elevação d chapa contínua, os americanos introduziram alguns ajustes na passagem do forno para a estrutura vertical, no chamado método Pittsburgh. Houve uma melhora real na qualidade ótica do vidro. Mas o grande avanço na produção do vidro estirado foi o emprego do método Libbey-Owens – nome dos dois sócios da Libbey-Owens Sheet Glass Company estabelecida em Toledo, EUA, desde 1917: Edward Drummond Libbey, presidente da companhia, e Michel J. Owens, criador do sistema e de vários modelos de máquinas automáticas para a pridção de artigos de vidro. Adotado pelos grandes fabricantes mundiais nas décadas de 1930 e 1940, o processo trazia como principal inovação a horizontalização de toda a estrutura por onde passava a chapa, o que proporcionou melhor manejo desta e mais precisão no seu corte.
O mercado
Como os próprios fabricantes e comerciantes reconheciam, o preço era bom, mas a qualidade do vidro plano brasileiro deixava a desejar. Para os consumidores residenciais mais exigentes e para os processadores de chapas, a alternativa continuava a ser a importação.
Era compreensível. Tratava-se de uma indústria recente, sem tradição no país e que enfrentava as dificuldades naturais do domínio da tecnologia, da preparação da mão-de-obra, da logística de distribuição, da formação de vendedores, de instaladores. Tudo isso sem nenhum programa governamental específico de apoio ao setor, a não ser a elevação dos direitos de importação e a criação da Companhia Nacional de Álcalis, em 1943, para a produção da barrilha, um dos componentes básicos do vidro.
Ainda assim, o êxito da empreitada, que mal se iniciava, era indiscutível. As indústrias procuravam melhorar seus processos produtivos, estreitando relações com tradicionais fabricantes europeus e norte-americanos. Buscavam diversificar seus produtos, começando a desenvolver os segmentos de vidros de segurança e vidros impressos. Quanto ao vidro plano comum, já atendiam certamente mais da metade do consumo interno, superando aos poucos a importação em função de seus custos competitivos e sua estrutura de atendimento.
Na década de 1950 já se destacavam no mercado grandes comerciantes de vidro, como o próprio Sebastião Pais de Almeida, misto de industrial e comerciante, que chegou a ter cerca de 60% da distribuição de todo o país. E não eram poucos, entre os grandes importadores, que começavam também a diversificar seus negócios ou simplesmente a transformar-se em distribuidores atacadistas de vidro para mercados regionais. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a Casa Araújo Martins, uma das mais tradicionais importadoras do Rio de Janeiro. Ou com a M. Simões, antiga importadora de Santos criada em 1897 pelo imigrante português Manuel Francisco Simões, que seus filhos transferiram para São Paulo e transformaram em grande atacadista de vidro do Centro-Sul do país, com uma rede de representantes comerciais que se estendia de São Paulo ao Rio Grande do Sul.
Estes, na verdade, talvez tenham sido os efeitos mais importantes verificados no setor de vidro plano a partir do início da implantação da indústria nacional. Criaram-se, entre produção e distribuição, os vínculos indispensáveis para uma eficiente comercialização do produto e regionalizaram-se os mercados, eliminando a dispersão dos centros produtores, gerando escala de produção e consumo.
O vidro plano, mesmo não estando entre os setores industriais mais incentivados, dava também a sua contribuição para criar, em um país-continente como o Brasil, um mercado nacional de bens e serviços concentrado e integrado. Além de contribuir para o avanço da industrialização brasileira com uma base técnica e economicamente consistente, capaz de grande desenvolvimento no futuro.